Se houve alguma animosidade entre França e Itália, ela ficou em outras áreas e épocas. No campo da cultura, os países colaboram com parcerias e inspirações. Um exemplo disto é o filme francês “A Noite do Triunfo”, que ao ser refeito na Itália ganhou o título de Obrigado, Rapazes. Uma história inspiradora e divertida como esta com certeza não poderia ficar restrita ao cinema de um só país.
Antonio Cerami (Antonio Albanese) é um ator decadente que aceita dar uma oficina de teatro em uma prisão. Ele acaba montando, em seis horas de aula, uma representação da fábula da Lebre e a Tartaruga com os cinco detentos que se inscreveram na oficina. Mas aí Antonio se inspira em seu próprio passado, e decide que o próximo passo será montar, com aqueles mesmos cinco detentos, a peça “Esperando Godot” no teatro de seu amigo Michele (Fabrizio Bentivoglio), que lhe havia indicado para o trabalho na prisão.
A cada detento é dada uma ou duas características marcantes, de forma que criamos afeição e nos importamos com todos eles. Não ficamos sabendo por qual crime cada um deles cumpre pena, o que é interessante escolha na construção destes personagens.
Antes do trabalho na prisão, Antonio dublava filmes pornográficos. A indústria da dublagem na Itália é uma indústria forte, haja vista o fato de quase todos os filmes estrangeiros serem dublados para a língua italiana – lá, assim como acontece na França e na Espanha, filmes legendados são raridade e disponíveis em geral só em salas e circuitos alternativos. De fato, desde 1927, quando foi promulgado um decreto-lei sobre dublagem, quase todos os filmes estrangeiros que chegam à Itália são dublados. A dublagem é feita por atores profissionais, e há um grande campo de trabalho para eles. Mas este campo já foi maior: entre as décadas de 1940 e 1970, muitos filmes italianos contavam com dublagem na pós-produção, incluindo filmes do mestre Fellini: imagem e som eram trabalhados separadamente, e nem sempre era ouvida a voz do ator que interpretava o personagem no produto final.
Ao serem apresentados para Antonio, um dos detentos pergunta se a prisão não poderia ter chamado Favino no lugar do ator decadente. O Favino a que ele se refere é, sem sombra de dúvida, Pierfrancesco Favino, ator extremamente popular no país. Com sucessos recentes chegando aos cinemas brasileiros – a exemplo de “O Colibri” e “Nostalgia” – Favino vai aos poucos se tornando o rosto do cinema italiano no Brasil, da mesma forma que Omar Sy se transformou no rosto do cinema francês no Brasil com o megassucesso “Intocáveis”, lá em 2011. Favino dá as caras em outro filme presente no Festival de Cinema Italiano, “A Última Noite de Amore”.
O diretor de Obrigado, Rapazes é Riccardo Milani, que iniciou sua carreira como assistente de direção do grande Mario Monicelli. Milani é casado com a atriz e roteirista Paola Cortellesi, que fez sua estreia na direção com o filme “Ainda Temos o Amanhã”.
A adaptação de “A Noite do Triunfo” foi bastante fiel. Algumas poucas mudanças foram feitas, em especial em relação ao protagonista Étienne Carboni, interpretado no filme francês por Kad Merad. Em “A Noite do Triunfo”, Étienne não tem um trabalho tão humilhante quanto no filme italiano, e ganha ao final um discurso emocionante que arranca aplausos. Fora isso, no filme francês há mais destaque para as montagens de “Esperando Godot” em turnê, com os detentos-atores mudando as falas para conseguir risadas do público. “A Noite do Triunfo” foi baseado em dois outros filmes sobre a história real: o longa de ficção “Vägen Ut” (1999) e o documentário “Les Prisonniers de Beckett” (2005).
Nos últimos anos, vêm se multiplicando e se destacando projetos de remição da pena de detentos através de atividades culturais como a leitura e o teatro. Isso, contudo, não é novidade, pois a história dos filmes foi uma história real, acontecida na Suécia em 1985. A remição de pena é prevista, no Brasil, por lei desde 1984, se ocorrem dentro da prisão ações que visam à ressocialização dos detentos. Certamente é o caso com a montagem do teatro no filme, visto que os detentos aprenderam uma nova profissão e usaram sua criatividade de maneira produtiva.
Antonio estava descrente e cabisbaixo antes de começar a trabalhar com os detentos talentosos em seu projeto pessoal. A arte mudou a vida dos presos, mas sobretudo devolveu a Antonio o brilho nos olhos: fica aqui demonstrado, mais uma vez, o poder da arte de transformar vidas.
“Obrigado, Rapazes” é um dos filmes presentes no 18º Festival de Cinema Italiano no Brasil, que acontece gratuitamente entre 08/11 e 09/12/2023 em mais de 60 cidades e também pelo site.
Leave a comment